As palavras podem criar engrenagens engraçadas (como esta própria seqüência de substantivo e adjetivo, por exemplo), proporcionando visões esquisitas e outras tantas maluquices mais.
Da janela do meu quarto, tenho uma vista privilegiada para o Corcovado. Mas afinal, o que quer dizer corcovado?
Segundo o dicionário que disponho em mãos: adj. Que tem corcova; curvado; corcunda.
Antes, nunca tinha imaginado uma aproximação entre o Cristo Redentor e o camelo (e verdade que o todo poderoso viveu na região do bicho).
Agora, sempre vejo Nosso Senhor montado no tal quadrúpede.
Rio, 18/05/99.
terça-feira, 30 de outubro de 2007
Cristo e o Camelo
domingo, 28 de outubro de 2007
Selvagens - notas dominicais XXV
"- Capitão! - chamei.
- Ah, é o senhor, professor? Muito bem. Caçou muito?
- Sim, capitão, mas levantamos também um bando de bípedes bem perigosos.
- Bípedes?
- Selvagens.
- Selvagens? - retrucou o capitão, em tom irônico. - E o senhor admira-se de que, tendo posto o pé em terra firme, aí tenha encontrado selvagens? Em que lugar do mundo não há selvagens? Mas tranquilize-se, professor. Não há motivos para preocupações."
(Júlio Verne em 20 Mil Léguas Submarinas)
quinta-feira, 25 de outubro de 2007
Breve receituário para possíveis navegantes suicidas
Posts são como garrafas de náufrago jogadas ao mar. Fiz esta descoberta depois de publicar alguns que cheiravam a sangue. Família, amigos e até um ex-analista que não tinha mais notícias apareceram de todos os cantos e por todos os meios. O rol que segue abaixo, portanto, é de utilidade pública. Um pequeno receituário para possíveis suicidas do novo milênio:
1 - não tenham blogs, até porque será muito difícil escrever algo mais impactante do que o seu futuro ato (e sinto informar: os jornais, mesmo que fiquem esquecidos num arquivo público, lhes perpetuarão em sua coragem; suas escritas na rede, a menos que sejam famosos, muito pouco provável);
2 - caso tenham blogs, jamais escrevam na primeira pessoa;
3 - escrevendo na primeira pessoa, falem sempre dos outros, nunca de si;
4 - desrespeitando estes três primeiros conselhos, deixem de atender telefone(s), campanhia e checar e-mail ou messenger.
Espero que seguindo essas dicas consigam seus objetivos com bastante sucesso. São os votos do
Dr. E.
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
Esse é o alvorecer de tudo que se quer ouvir
Pegando carona no rabo do último post, segue outra dica musical, desta vez quentíssima:
"No Olimpo", faixa 12 do Fome de tudo, último da Nação Zumbi. Coisa mais foda que ouvi por esses tempos. Procurem e escutem. Ando chapado com ela no juízo...
(trechinhozinho aqui)
ps.: e o design gráfico do disco?! É o fraco!!!
terça-feira, 23 de outubro de 2007
Entre queijandos e ardências
Em dois posts recentes que escrevi (um e o outro ainda se encontra nesta mesma página), usei a palavra "mertiolate" como substantivo-metáfora para hiperbolizar minhas agonias. Pois foi. Mas ontem, ao conversar com uma amiga e leitora ao telefone, ela me alertou:
- Você sabia que mertiolate não arde mais?!
- Claro que não!
- Isso era coisa de nossa infância.
- Sou mesmo um ultrapassado. E sempre desconfiei que minhas dores não valem nada!
Ps.: e por falar em ultrapassado, vai a dica: faixa 9 do Carnaval na obra, bolacha do mundo livre s/a de 1998 (valha-me, quase 10 anos já!). O melhor samba-punk feito no planeta - trechinho mínimo aqui -, daqueles pra acreditar na dor da existência. E de verdade.
domingo, 21 de outubro de 2007
Vida: modos de não usar - notas dominicais XXIV
"Um indício praticamente seguro de descaminho é o uso da palavra 'espiritualidade'. Também é preciso fugir dela a toda pressa, pois não quer dizer absolutamente nada. Se tivesse um sentido, essa palavra quereria dizer a vida do espírito. Na imaginação e em liberdade, fora dos limites conhecidos. Neste sentido Shakespeare e Dostoievski a praticaram no mais alto grau, assim como Einstein, Kant e muitos outros. Eles viveram pelo e para o espírito. A religião, que se esconde com frequência sob a palavra 'espiritualidade', que de alguma maneira aponderou-se dela, dando a entender, como no passado, que o espírito existe fora do corpo, é, ao contrário, a negação de toda vida independente do espírito, que ela encerra o mais cedo possível atrás das barras de um dogma.
Fujamos dos dogmas, logicamente. Desistamos de encontrar um sentido para nossa vida: ela não tem. Nós nos acostumamos facilmente e não ficamos mal, ao contrário. Podemos substituir a busca do sentido, que é vã, por um esforço pela vida mesma. Substituir o 'por que viver' pelo 'como viver'. E neste caso, sim, há muito a ser dito, muito a ser feito...
(Jean-Claude Carrière em Fragilidade)
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
Veredas do meu inferno
O suor escorre por minhas feridas como mertiolate, denunciando em seus caminhos ardentes a minha angústia. As chagas queimam, mas o corpo é pouquíssimo e a transpiração parece saber disso. Sua revelação - líquido-filho-da-puta! - é mero sarcasmo com meu coração que, ainda mais lacerado, por sorte está dentro de mim e fora do seu alcance...
terça-feira, 16 de outubro de 2007
Ligando pro rebocador
Existem corações que carregam dor por toda vida. Por toda não, as vezes alguns deles a abandonam de forma radical. Isto é o que faz tal víscera nos suicidas. Entendo estes últimos. A existência não é pra qualquer um. Para que ela seja minimamente digna, é preciso uma conjunção especialíssima de fatores que estão entre a fisiologia e o destino. Um coração deveras atormentado tem todo direito ao desespero. E sem essa de acusar de fraqueza, pois no fundo este substantivo, juntamente com nossos limites, é uma de nossas poucas grandezas. Cada um sabe a dor de ser o que é. E a delícia? seria o caso do leitor perguntar reclamando o bordão. Talvez não, tendo em vista também que para alguns a angústia é um sentimento inexistente (por mediocridade ou pela loteria de uma estrutura neurológica favorecida, sabe-se lá). Creio que uma vida humana, demasiadamente humana, é aquela que perambula entre os extremos do verso a que fiz menção. Tem momentos, no entanto, que acreditamos (ou temos que acreditar), polianamente, que a beleza da vida está no mamão que comemos nas primeiras horas do dia. Mas, vamos combinar, aí tá foda...
domingo, 14 de outubro de 2007
Amor de muito - notas dominicais XXIII
"a alta tradição mística muçulmana, a dos poetas persas (Hafez, Rûmi, Saadi), colocou o amor acima do mundo. Um amor que não é restritivo, como no Ocidente (onde os apaixonados se dizem sozinhos no mundo), mas, ao contrário, ilimitado. Pois amar alguém é se tornar amor, é amar a todos os outros, até os animais, as árvores, os planetas. É se ver na impossibilidade de não amar."
(Mais um trecho de Fragilidade de Jean-Claude Carrière)
quinta-feira, 11 de outubro de 2007
Verdade ou consequência
(pequeno exercício de prosa e ocasião inspirado num dos tantos diálogos com Minde, a quem poderia dedicá-lo, mas ela merece coisa muito melhor...)
Feriado prolongado de 12 de outubro. Tínhamos ido para o sítio de um amigo que ficava no agreste pernambucano - na verdade, no município de Gravatá. Éramos ao todo sete (e não é conta de mentiroso). Sentíamo-nos, sem a mínima modéstia, como príncipes da capital diante da comunidade local e um orgulho tolo e juvenil enganava nossas mentes.
Na primeira noite, sob o olhar distante de alguns caseiros, brincávamos de “jogo da verdade” regados a garrafas de aguardente. Um dos vasilhames, apressadamente vazio, servia como ponteiro. Ríamos bastante, falávamos alto e nos julgávamos felizes (de verdade).
Na manhã seguinte, eu sequer conseguia lembrar das verdades que tinha inventado. Senti-me nu, completamente despido. As verdades não estavam mais em mim - na verdade, acho que elas nunca estiveram. Apenas cheguei a recordar de um aceno sabiamente indiferente que ganhei, em meio a nossa balbúrdia, de um dos caseiros do sítio. Naquele instante, tal lembrança era tudo o que eu possuía. E, sinceramente, nada mais merecia...
Desdaquele sinal, juro, comecei a ter mais préstimo. De verdade.
terça-feira, 9 de outubro de 2007
Cana, revolta e larica de vida
"Mas também esses pernambucanos são revoltados com tudo!" Eis a frase que ecoou em minhas oiças na saída de mais uma premiere do festival de cinema do Rio. Em primeiro lugar, caberia a pergunta: que pernambucanos? Sabemos que esses rótulos identitários comumente escondem a complexidade que existe nos grupos a que se referem, quaisquer que sejam eles (religiosos, nacionais, estaduais etc.). Ainda no campo da cultura, posso usar como resposta, por exemplo, a constatação de que o teatro/televisão que João Falcão faz nada tem a ver com a música do mundo livre s/a.
No entanto, admitamos as vestes. Por que seriam os pernambucanos tão revoltados? Precisamente, não sei. Muito coentro na infância, talvez diria Cláudio Assis. Tenho comigo algumas razões um tanto intelectuais, confeso, e um pouco mirabolantes. Razões que remetem as possíveis raízes de tal revolta (mesmo acreditando que só conhecemos raiz se for a da mandioca, como certa vez falou o ministro Gilberto Gil). Sobre o fato de serem mirabolantes... podem ser, ma non troppo. Vejamos.
Minhas razões são um tanto marxistas, ou melhor, materialistas. Até que um outro ciclo econômico tome conta do Estado (que Suape traga a bonança além dos tubarões de BV), os pernambucanos serão sempre seres açucarados - metáfora não no sentido figurado relativo a meiguice ou delicadeza (muito pelo contrário!), mas referente ao "ouro branco" mesmo. Desde a perda do domínio comercial açucareiro, que sustentou a nação durante um bom período, Pernambuco se tornou um entrave político para o país. O declínio da oligarquia canavieira e a consequente falta de reconhecimento nacional geraram uma espécie de revolta da elite que, além de dinheiro e território, perdeu seu bem mais precioso, o pestígio. E tome choro então. Choro e revolta. No ambiente da cultura, a intelectualidade local, herdeiros representantes desta elite, montaram seus discursos neste mesmo trilho da perda, do ressentimento (a afirmação regionalista nordestina na primeira metade do século XX - e sua peleja com o modernismo paulista - pode ser sintomática neste sentido).
Mas seriam estes os pernambucanos revoltados da frase colhida na saída da premiere? Creio que não. Aqueles são de outra cepa. São rebentos do ápice da estagnação econômica que levou o Recife ao caos social dos anos 1990, com índices alarmantes de miséria - em 91 chegou a ser considerada a quarta pior cidade do mundo para se viver, segundo uma pesquisa do Population Crisis Committee, órgão credenciado pela ONU. São urbanos, cosmopolitas pobres (salve Silviano Santiago!) e brabos. Uma brabeza que não é o choro de perdedor de outrora (até porque já nasceram perdidos), e sim indignação e inconformismo. Nada dos achaques egolombráticos de boa parte da classe artística dos grandes centros. Nada de pantim. Percebem o mundo para além dos próprios umbigos, traduzindo-o em sua crueza e aberrações. Sabem da enganação da ordem neoliberal. Realizam as coisas com o tutano de quem conhece o lado B da existência. Senhores de novos engenhos*, botam pra moer a cana da inquietação, com sustância e muita, mas muita larica de vida...
*Metáfora de Francisco Reginaldo Sá Menezes (O Carapuceiro)
ps.: Este texto foi escrito após uma sessão de Deserto Feliz, o novo filme de Paulo Caldas. Assistam!(pelos motivos acima)
domingo, 7 de outubro de 2007
Única sobrevivente - notas dominicais XXII
"Charles Swann acorda uma manhã e constata de repente, enquanto se penteia, que não ama mais Odete, aquela mulher por quem ele 'quis morrer'. Ela, que foi para ele o maior de seus amores, na realidade não lhe agrada mais, 'não faz mais o seu gênero'. O mais forte dos sentimentos, o mais decisivo que ele experimentou na vida, acabara de deixá-lo sem prevenir, como um convidado descortês. E no entanto ele continua sendo o mesmo, ele é o Charles Swann. Ao menos acredita nisso.
Tudo o que acreditamos construir de sólido, fora de nós ou em nós, desaba um dia, ou enferruja, ou se corrói. É assim. Só a mudança permanece."
(trecho de Fragilidade de Jean-Claude Carrière)
quinta-feira, 4 de outubro de 2007
Férias da existência
"Tem dia que de noite é assim". Dou um loop na frase do marinheiro, pluralizo e sampleio à minha angústia e precisão: tem dias que as noites não têm fim.
Como o mote já denuncia, a maré não é das melhores (ou continua na vazante - pra quem acompanha este torto varal de parágrafos). Mas não escreverei sobre meus desvãos, não consigo ser óbvio o bastante para transformar a dor em narrativa, poema ou canção. Traduzo-a em meu próprio consumo e no prazer mais idiota de arrancar a pele como se eu quisesse sair de mim (e que outra coisa almejaria?).
Não, essa prosa-melancolia não sairá daqui. Como já falei, não tenho obviedade suficiente para isso. O que tenho é o inalcançável desejo de tirar férias da existência...