A farra já se distancia uns dois dias, pero (el portunhol selvagem se deve a ela) minhas mãos ainda tremem ao tentar equilibrar café e cigarro. Definitivamente, não sou mais um profissional. Tento me recompor através da ôia, do batente que me põe a comida na barriga, pero, una vez más, estoy como un náufrago. Entremear patuscada e obrigação é como um sonho interrompido por guilhotina, para a qual você é empurrado com o gosto de angu de sangue ainda na boca...
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Este final de semana rolou no Rio o evento literário "Popular" organizado pelo gaúcho Paulo Scott (outras edições já tinham ocorrido em POA e Sampa). Na ocasião, tive o prazer de conhecer Joca Reiners Terron, de quem já conhecia suas duas pérolas: a musa - nossa princesa do Cariri! - e a literatura, e Marcelino Freire, cujo Contos negreiros é o desejo de quem quer fazer da arte da escrita uma coisa popular nesse país. Dois salves e muitíssimo prazer! E ainda sobrou dois dedos de prosa com João Paulo Cuenca, autor que já conhecia de Corpo presente, pelo livro e por uma mesa que mediei certa vez na Puc-Rio. É de Cuenca a crônica que compilo abaixo, publicada n'O Globo de hoje e que diz respeito ao filme tratado no penúltimo post deste blog. Classe A, confiram!
Tropa de elite: Osso duro de roer
Se precisasse definir o Brasil numa frase, diria que é o país do perdão. O país da anistia ampla, geral e irrestrita. Anistia que, em lei aprovada pelo governo Figueiredo, não somente livrou a cara dos perseguidos pela ditadura entre 1964 e 1979, mas que também abriu as asas da liberdade aos perseguidores e criminosos “oficiais”. Neste país de consciência livre, estupradores, torturadores e assassinos hoje jogam peteca na praia de Copacabana e curtem sua tranqüila aposentadoria. Depois de encher os bolsos, mandar bater e lotear estatais por duas décadas com sobrinhos com dificuldade de aprendizado, os milicos têm a vida que pediram a Opus Dei.
O Brasil, e isso costuma chocar mais nossos companheiros latino-americanos do que a nós mesmos, é o país mais atrasado do continente quando se fala em punir os responsáveis pelos abusos cometidos pelo regime militar. Para o bem da “paz e harmonia nacionais”, o governo e a sociedade preguiçosa abaixam as orelhas e deixam pra lá. No país da anistia, tudo é perdoado com esquecimento. O que aconteceu deixa de ter acontecido, como se a roda da história se alimentasse de si mesma, num processo autofágico e irreversível.
O custo dessa amnésia tão simpática e conveniente é alto. Esse déficit moral faz com que o brasileiro aceite a idéia de tortura e violência policial como quem come um pastel de carne moída.
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Escrevo esses parágrafos, como vocês devem imaginar, movido pela experiência de assistir à pré-estréia de “Tropa de elite”, na última quinta-feira, no Odeon. Além da equipe do filme e usuais papagaios de pirata, a sessão contou com a presença, in loco, de Harvey Weinstein, criador da Miramax, vencedor de 45 oscars, produtor de blockbusters como “Pulp Fiction” e “Senhor dos Anéis” e, claro, co-produtor de “Tropa de elite”. Weinstein, segundo perfil publicado pela New Yorker, é conhecido como “Harvey mãos de tesoura” pelo seu hábito de interferir na montagem dos filmes que produz. Imagino que não tenha sido o caso.
Poderia entrar no mérito exclusivo do filme e dizer que é impecável no que se propõe e que, apesar (e por causa) da pirataria, será um sucesso de bilheteria estrondoso. Ainda poderia escrever que “Tropa de elite” na maior parte do tempo parece um institucional nauseante do BOPE – no final, só faltou o “Aliste-se já!”. Apesar disso, levanta algumas lebres, dá um par de tiros certeiros e deixa pelo menos uma cena na memória – aquela do policial Matias invadindo uma passeata pela paz na PUC.
Ao mesmo tempo, o filme é de um reacionarismo que talvez não tenha paralelos na história do cinema nacional. O texto é claro como pó de mármore: o tráfico de drogas é um câncer, a elite branca é hipócrita, a PM é corrupta, e o BOPE é incorruptível. Só o BOPE, através de seus imaculados princípios, nos salvará das trevas. E para isso, tem certas licenças nada poéticas – a tortura é a principal delas. Eles, que são puros, fazem o serviço sujo que nós, hipócritas de classe média, não encaramos. A lógica do discurso policial que “Tropa de elite” reproduz é cristalina.
O problema começa quando esse monstro disforme chamado opinião pública faz uma leitura do filme que corrobora esses métodos e valores. E aí, “Tropa de elite” pode perigosamente entrar para a história como o filme da geração “Cansei”. O público torce pelo herói torturador e mata com ele, tortura com ele, em repetidas cenas à la Abu Ghraib – ou “Guantanamo no Rio de Janeiro”, como disse meu amigo Daniel Alarcón. As celebridades enfiadas em black-tie aplaudem cada porrada, num frisson de adrenalina, e todos se convertem instantaneamente em perfumados torturadores de gabinete.
Depois, é claro, sabe-se que vem o perdão, nossa querida e mui conhecida anistia, para o torturador assassino justiceiro e para nós, apêndices conexos dessa violência, como diz a lei número 6.683. Porque, para o bem da “paz e harmonia nacionais”, os fins justificarão os meios até o (nosso) fim. Enquanto isso, o pastel de carne moída segue descendo bem pela goela de todos. O uísquinho servido em coquetéis de estréia como a de “Tropa de elite” pode ajudar.
terça-feira, 25 de setembro de 2007
Referências bibliográficas
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