terça-feira, 28 de agosto de 2007

Tecendo a (minha) manhã

Criado pela efervescência cultural do Recife da década de 90, tomando lições do groove afrofuturista da Nação Zumbi e de máximas como "é povo na arte, é arte no povo, e não povo na arte de quem faz arte como o povo", confidencio que, mesmo tendo tomado um percurso acadêmico, sempre tive uma certa resistência aos nossos "grandes heróis" culturais. E uma rápida genealogia da maioria destes personagens, legitima meu sentimento. No entanto, Gilberto Freyre e João Cabral são escritores desta cepa que, por caminhos literários diferentes, provam que o mundo é muito mais complicado do que a nossa arrogância pressupõe. Graças a Deus, seria o caso de dizer, pois facinho nesta vida só pescar agulha com faxo em Itamaracá (e ainda é assim, é?).
Não me deterei aqui no Conde de Apipucos, só um pouquinho no poeta João. Sobre este último posso dizer que minha admiração por ele já vem de certo tempo, por um viés meio atravessado, mezzo situacionista, mezzo punk, costura possível que faço através da sua luta contra o lirismo, contra o derramamento sentimental (coisa que o mercado e a publicidade adoram) - há de se considerar também nesse meu apego ao "homem sem víscera esquerda" a semelhança de sua poesia com a prosa enxuta do grande (esse de verdade verdadeira!) Graciliano.
Bom, mas o motivo desta minha ladainha é que hoje, quando ainda estava "Tecendo a manhã", fiquei sabendo que as obras completas do poeta está sendo relançada. E meu pombo-correio foi Arnaldo Jabor(!), de quem trago abaixo a crônica publicada nos jornais de grande circulação do país. Os leitores devem estranhar a presença do ex-cineasta neste blog (assim espero!), mas o texto é bacana (olhem o trecho: "essa renúncia ao sonho individual da 'iluminação de um individuo inspirado', o desejo de ser apenas uma coisa-do-mundo") e deixa um monte de janelas para pensamentos e discussões. Leiam e digam...
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João Cabral nos mostra o Brasil em negativo
Arnaldo Jabor

A Editora Objetiva está lançando agora a obra completa de João Cabral de Melo Neto, pela coleção Alfaguara e, assim, revitaliza um dos maiores poetas do mundo, que muito brasileiro desconhece. Isto lembrou-me uma das frases mais profundas que conheço sobre a serventia do artista, que é de Paul Cézanne: "Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim".

Essa ligação com a natureza perdida, esse apagamento da distancia entre sujeito e objeto, essa renúncia ao sonho individual da "iluminação de um individuo inspirado", o desejo de ser apenas uma coisa-do-mundo, tudo isso me lembra João Cabral de Melo Neto, de quem se pode dizer: ele foi "a consciência da linguagem se falando nele".

Ele sabia disso: "Eu só falo das coisas e, de certa forma, estou falando de mim por elas..."

Em geral, os críticos o definem como o poeta brasileiro que nos ensinou a "não perfumar a flor, nem poetizar o poema", a propósito de seu estilo seco, como se ele fôsse apenas um faxineiro dos parnasianos e dos palavrosos. Mas, João foi muito mais que isso.

Se, por exemplo, examinarmos o seu extraordinário poema "Uma Faca só Lâmina" (um dos maiores da língua portuguesa) veremos que ele é um dos raros artistas que tentaram passar "alem da arte" e entrar numa terra-de-ninguem que poucos visitaram, uma "waste land", um latifundio pré-linguagem, querendo o impossível: atingir o "real", essa "terra não descoberta", avistada por alguns como John Donne, mais tarde, por Francis Ponge, Marianne Moore, gente que não estava apenas fazendo poesia, mas epistemologia. Para mim, João Cabral fez uma teoria da percepção.

Antes de morrer, ele disse a alguém: "Escrevo não para me expressar, mas para preencher um vazio". Quem tem coragem de entrar nesse vazio, na "falta", na falha eterna que nos cega? João teve a obsessão de atingir algo além do tempo e do espaço, uma espécie de "sonho kantiano", a vontade de ir alem do "fenômeno". "As vezes, nos dá a sensação de ter conseguido.

João passou a vida com uma dor de cabeça torturante não era para menos. Que cabeça aguenta esse esforço permanente de ter dois microscópios no lugar dos olhos, de flagrar o decorrer do tempo no alpendre, no canavial, o tempo corroendo as coisas como um vento invisível? (Van Gogh pintou o tempo se passando no espaço e se matou).

Como Proust, João Cabral também fez a geometria dos sentimentos, descrevendo a planta baixa das emoções, esquadrinhando-as como objetos concretos, de todos os lados, sem aspiração á transcendências "inspiradas", sempre comparando matéria com matéria, mostrando que a mulher é igual a fruta, que a praia é o lençol na cama, que a bailarina espanhola é a égua e a cavaleira, que o rio tem dentes podres, que o cão não tem plumas, que a alma do miserável cassaco de engenho é feita de pano sujo de aniagem. João Cabral nem parece um artista; parece cientista, matemático, o que fortalece seu sopro lírico, domado, mas circulando como sangue dentro da pedra.

João virilizou muito a poesia , acabou com a sensação de que arte é frescura ou coisa "de veado", como dizia meu pai, engenheiro, filho de poeta árabe. Tive um grande alivio quando ele me disse, uma vez, quando o entrevistei: "O mal que Fernando Pessoa fez a literatura é imenso. Aquela coisa derramada, caudalosa, criou uma multidão de poetastros que acreditam na inspiração metafísica".

Eu, que rosnava covardemente pelos cantos porque não gostava de Pessoa, finalmente respirei. E João Cabral continuou : "Eu saio do poema suando, com picareta. Minha obra é motivo de angustia. O sujeito tem de viver no extremo de si mesmo. Eu vejo isso na tourada. O bom toureiro é o que dá impressão ao publico de que vai morrer".

A importância de João Cabral é imensa também nesse campo do que chamam de "poesia política, engajada" e outros termos insuficientes. Pela forma, pela recusa a idéias gerais, João Cabral fez a poesia mais profunda sobre o Brasil, a mais "política" também.

A visão que sua poesia nos dá sobre a miséria do país não vem de conteúdos, de brados contra a injustiça ou de denuncias de tragédias. Assim como a importância política de Brecht se fez muito mais pela inversão dos significantes da forma teatral, muito mais em "Baal" ou na "Selva das Cidades" do que em suas peças didáticas, assim também João Cabral nos ensinou muito sobre o Brasil através de suas visões do vazio, movidas apenas por uma discretíssima compaixão. Na entrevista, Cabral critica Mario de Andrade: "Essa historia de identidade nacional é invenção dele. Esse negócio de síntese do Brasil é bobagem. Grande é Gilberto Freyre, que escreveu sobre o cotidiano da escravidão. As parcialidades é que iluminam". Ele também disse, nesta entrevista, há 15 anos: "o Brasil está numa crise de parto. As coisas são sinistramente surpreendentes. A ditadura torturou, mas não regrediu o país. Agora, com a liberdade, está parado. Dá para entender? Se puser o homem mais genial do mundo no governo, os estamentos burocráticos e os políticos reacionários não deixam o país crescer..."

João Cabral descreveu o Brasil em negativo. Ele não nos mostra a pobreza; ele mostra a riqueza que nos falta. Em sua poesia, pelo avêsso, João nos mostrou tudo o que "não temos". João mostrou-nos o que poderia ser nossa lingua (e não é). João Cabral nos mostrou o que o país está perdendo.

Jovens, leiam João Cabral e salvem-se!

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