"Ele jamais lhe falou dessa desventura, e até mesmo parou de pensar no assunto. Mas, de quando em vez, seus pensamentos vagantes se deparavam com essa lembrança, quieta, despercebida, despertavam-na e faziam com que ela revivesse, surgindo no seu consciente, causando-lhe uma dor cortante e profunda. Como se fosse uma dor física, a sensação não podia ser aliviada pela mente de Swann; mas, ao menos no caso de dor física, por ser independente da mente, esta pode sobre ela se deter, perceber que diminuiu, que, por um momento, parou. Mas, nesse caso, a mente, ao relembrar a dor, conseguiu recriá-la. Decidir não pensar na dor era o mesmo que nela pensar, por ela ainda sofrer. E quando, em conversa com os amigos, ele se esquecia da dor, de súbito, uma palavra dita casualmente provocava-lhe uma alteração de fisionomia, como um homem cujo membro ferido é tocado por mão canhestra. Quando deixou a companhia de Odette, ele estava feliz, sentia-se calmo, lembrava-se dos seus sorrisos, da troça sutil, quando falava de fulano ou beltrano, da ternura para consigo mesmo; lembrava-se da gravidade da cabeça dela, que parecia retirada do eixo para pender e rolar, como que voluntariamente, sobre os lábios dele, conforme ela fizera naquela primeira noite, na carruagem, os olhares lânguidos que ela lhe dirigira, enquanto estava em seus braços, apoiando a cabeça sobre o próprio ombro, como quem se encolhe de frio.
Mas, de repente, o ciúme, como se fosse a sombra do seu amor, apresentou-lhe o complemento, a familiaridade daquele novo sorriso com que ela o saudara naquela noite - e que, agora, de modo perverso, zombava de Swann e brilhava de amor por outro - da cena da cabeça pendida, agora afundando em outros lábios, todas as manifestações de afeto (agora dirigida a outro) que ela lhe demonstrara. E todas as lembranças voluptuosas que ele levou da casa dela, por assim dizer, tantos esboços, rascunhos como os que um decorador submete ao cliente, permitindo a Swann formar uma idéia das diversas atitudes, flamejantes ou lânguidas de paixão, que ela adotaria com outros. O resultado foi que ele passou a deplorar cada satisfação que desfrutava em sua companhia, cada nova carícia da qual ele cometera a imprudência de apontar-lhe o prazer, cada novo encanto que encontrava nela, pois sabia que, em algum momento mais tarde, tudo isso enriqueceria a coleção de instrumentos de sua câmera secreta de tortura."
(Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido)
domingo, 16 de novembro de 2008
Câmera secreta de tortura - notas dominicais
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Um comentário:
houve uma época, na minha total loucura, que eu imaginava que vc. escrevia essas coisas pra mim rsrsrsrsrs. Loucura, necessidade de fantasia ou excesso de romantismo? rsrsrsrsrs PASSOU! mas foi divertida, enquanto durou, aquela insanidade. Vc é MUITO mais louco do que eu...
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