sábado, 16 de agosto de 2008

Sobre o romance (da série "Pedagógicas"1)

No seu livro Cultura e Imperialismo (um genial desmonte dos cânones culturais ocidentais), o crítico palestino Edward Said escreve o seguinte comentário sobre o romance, o gênero literário:

"o romance, como artefato cultural da sociedade burguesa, e o imperialismo são inconcebíveis separadamente. Entre todas as principais formas literárias, o romance é a mais recente, seu surgimento é o mais datável, sua ocorrência, a mais ocidental, seu modelo normativo de autoridade social, o mais estruturado; o imperialismo e o romance se fortaleciam reciprocamente a um tal grau que é impossível, diria eu, ler sem estar ligando de alguma maneira um com o outro."

Ao longo do percurso da criação literária mundial foi ficando claro que nem todo romance é burguês e/ou imperialista. A loa saidiana é uma interpretação histórica do gênero (com a qual, diga-se de passagem, estou de acordo e sempre lembro dela quando o formato aparece como assunto). Não irei me aprofundar nesta discussão. O que gostaria aqui é de responder uma pergunta que toma como referência uma sentença do próprio trecho citado: se entre as principais formas literárias o aparecimento do romance é o mais datável, quando e como ele se dá? Pra tentar respondê-la, transcrevo uma passagem que li esta semana do livro Reflexões sobre a Arte do também crítico (só que brazuca) Alfredo Bosi:

"A epopéia, diz Lukács, é o gênero formado no mundo da comunidade (os 'tempos heróicos' ou 'poéticos' evocados por Vico na Scienza Nuova; desde que sobreveio a sociedade, perdidas as relações concretas e religiosas doos homens com a natureza, dá-se o que Max Weber chamou de 'desencantamento' do mundo: já não há lugar para aquela unidade existencial que tornou possíveis os mitos gregos, a Ilíada, as lendas medievais, o Cantar de mío Cid. As novas formas de sociabilidade apartam decisivamente os homens em classes econômicas e em grupos culturais e políticos; a vida pública tem um estatuto radicalmente diverso do da vida privada: o trajeto de cada ser humano é vivido como um caso singular, alheio ao destino dos seus semelhantes. E pra dizer esse processo de isolamento e angústia nasce um gênero novo, 'prosaico', dialeticamente herdeiro e negador da epopéia, o romance. Um divisor de águas insuperável é a antiepopéia de Miguel de Cervantes, a gesta inglória do Cavaleiro da Triste Figura, direito e avesso de um gênero em permanente revolução."

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