domingo, 31 de agosto de 2008

Filho dos outros - notas dominicais

"Que as pessoas possam perceber, naquilo que tomo emprestado, se eu soube escolher algo capaz de desenvolver meu tema. Pois faço terceiros dizerem o que não sei dizer tão bem, seja pela deficiência da minha linguagem, seja pela deficiência do meu entendimento. Não conto os empréstimos que tomo, eu os peso. E, se desejasse avaliá-los em função do número, teria acumulado o dobro. São todos, ou quase todos, tomados de figuras tão célebres e antigas que parecem se identificar o bastante, sem que eu precise fazê-lo. Nos pensamentos e criações que transplanto para o meu solo e aos meus mesclo, de quando em vez, propositadamente, não indico autor, a fim de deter a temeridade daquelas condenações prematuras que são disparadas contra todos os tipos de escritos produzidos por homens que ainda vivem, e escrevem na língua vulgar, que a todos convida a falar.(...)Preciso esconder a minha deficiência atrás dessas grandes autoridades. Aprecio qualquer um capaz de me superar, isto é, pela clareza do discernimento e pela distinção da força e beleza das observações. Pois eu que, por falta de memória, sempre deixo de percebê-las com base no conhecimento de suas fontes, posso muito bem perceber, ao avaliar a minha capacidade, que o meu solo não é, absolutamente, capaz de produzir as belas flores que por lá encontro semeadas, e que o frutos da minha própria lavra não podem a elas se comparar."
(Michel de Montaigne no ensaio "Sobre Livros")

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O Terror do Nordeste


Minha infância roubada, eis o sentimento. Fui criado no bairro do Arruda, o Santa Cruz está proustianamente em cada parágrafo de minhas memórias. O Mais Querido, o Terror do Nordeste, não merece a situação. Passará, assim como minha vida e a de todos. O Santinha jamais passará.


O silêncio do Terror (texto publicado hoje no Blog do Roberto*)

Hoje, o Recife é uma cidade em silêncio. O povo humilde nas ruas já não canta. A pobreza subitamente ficou mais triste. O Santa Cruz, antigo Terror do Nordeste, acordou quase na Série D do futebol brasileiro. O Mundão do Arruda com sua legião de fiéis está vazio.

Porque o Santa Cruz não é um clube de anéis de diamante. Carros importados. O Santa Cruz não nasceu em berço de ouro. O Santa Cruz é um clube feito de mangue e lágrimas. Mocambos e favelas. Longe dos palacetes de Rosa e Silva. Distante da fortuna da Abdias de Carvalho.

O Santa Cruz é a expressão mais perfeita de uma cidade feita de constrastes. Das pontes que cruzam o Capibaribe, holandesas. Das crianças que moram sob as pontes, africanas. Mas, se resta um consolo aos torcedores que guardaram suas surradas camisas tricolores na saudade. É a certeza de que a torcida tricolor não foi derrotada. Pois a paixão destes abnegados que só pensam no Santa Cruz com o coração permanece invicta.

Derrotados foram os dirigentes que durante décadas se aproveitaram do amor da torcida coral para se elegerem semideuses. Para serem heróis da mídia. Para multiplicarem seus haveres. Estes senhores não possuem a dignidade deste povo que hoje sofre em silêncio. Porque hoje o Recife é uma cidade em silêncio. A pobreza, subitamente, ficou mais triste...

*Roberto Vieira é escritor e blogueiro

Nada como um dia atrás do outro

Domingo, por volta das 16:00hs:
Cúmbia, Academia da Berlinda e Kakau Góis, rum e cigarrilhas cubanos, amigos e la pequeña a bailar...

Segunda, mesmo horário:
Biblioteca, Theodor Adorno e a Filosofia da Nova Música, Schoenberg e Stravinski, impaciência e ressaca.

domingo, 24 de agosto de 2008

Palco de loucos - notas dominicais

LEAR:
Viemos pra cá chorando, tu sabes,
A primeira vez que cheiramos o ar
Vagimos e choramos. Um sermão te farei.
Ouve

GLOSTER:
Que dia infeliz!

LEAR:
Ao nascer, choramos porque chegamos
Até este grande palco de loucos.

(Shakespeare em Rei Lear)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

República Guararapes


Ontem foi inaugurada a "Embaixada de Pernambuco" num casarão do bairro de Santa Teresa, Rio (já conhecia a locação, uma construção colonial incrível que vale a pena ir só pra conhecê-la!). Trata-se de um evento com shows, expos, oficinas etc., promovidos por artistas do velho Leão do Norte, entre eles: Eddie, Paulinho do Amparo, Xirumba, Lia de Itamaracá, Academia da Berlinda (foto) e mais uma pá de gente bacana. A função rolará até o dia 31 de agosto, apareçam lá! Programação e local aqui.

domingo, 17 de agosto de 2008

Parabólica das dores - notas dominicais

“Um sujeito sensível capta cinquenta impressões numa situação em que outro registra apenas sete. (....) Quanto mais sensível você é, maior a garantia de que sofrerá brutalidades, arranjará cicatrizes. Nunca evoluirá.”
Marlon Brando em entrevista a Truman Capote

sábado, 16 de agosto de 2008

Sobre o romance (da série "Pedagógicas"1)

No seu livro Cultura e Imperialismo (um genial desmonte dos cânones culturais ocidentais), o crítico palestino Edward Said escreve o seguinte comentário sobre o romance, o gênero literário:

"o romance, como artefato cultural da sociedade burguesa, e o imperialismo são inconcebíveis separadamente. Entre todas as principais formas literárias, o romance é a mais recente, seu surgimento é o mais datável, sua ocorrência, a mais ocidental, seu modelo normativo de autoridade social, o mais estruturado; o imperialismo e o romance se fortaleciam reciprocamente a um tal grau que é impossível, diria eu, ler sem estar ligando de alguma maneira um com o outro."

Ao longo do percurso da criação literária mundial foi ficando claro que nem todo romance é burguês e/ou imperialista. A loa saidiana é uma interpretação histórica do gênero (com a qual, diga-se de passagem, estou de acordo e sempre lembro dela quando o formato aparece como assunto). Não irei me aprofundar nesta discussão. O que gostaria aqui é de responder uma pergunta que toma como referência uma sentença do próprio trecho citado: se entre as principais formas literárias o aparecimento do romance é o mais datável, quando e como ele se dá? Pra tentar respondê-la, transcrevo uma passagem que li esta semana do livro Reflexões sobre a Arte do também crítico (só que brazuca) Alfredo Bosi:

"A epopéia, diz Lukács, é o gênero formado no mundo da comunidade (os 'tempos heróicos' ou 'poéticos' evocados por Vico na Scienza Nuova; desde que sobreveio a sociedade, perdidas as relações concretas e religiosas doos homens com a natureza, dá-se o que Max Weber chamou de 'desencantamento' do mundo: já não há lugar para aquela unidade existencial que tornou possíveis os mitos gregos, a Ilíada, as lendas medievais, o Cantar de mío Cid. As novas formas de sociabilidade apartam decisivamente os homens em classes econômicas e em grupos culturais e políticos; a vida pública tem um estatuto radicalmente diverso do da vida privada: o trajeto de cada ser humano é vivido como um caso singular, alheio ao destino dos seus semelhantes. E pra dizer esse processo de isolamento e angústia nasce um gênero novo, 'prosaico', dialeticamente herdeiro e negador da epopéia, o romance. Um divisor de águas insuperável é a antiepopéia de Miguel de Cervantes, a gesta inglória do Cavaleiro da Triste Figura, direito e avesso de um gênero em permanente revolução."

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Amor fati

Os anos passavam e o mesmo não ocorria com a sua loucura. O que fazia os diagnósticos aumentarem: "Viu fulano?, ficou doido depois de velho", dizia um. "Desde pequeno já era meio aluadinho", discordavam outros. A mãe, sempre ela, teimava que ele ainda tomaria jeito. Certo dia, de saco cheio, mas com a generosidade que lhe era peculiar, declarou: "Calma, meu povo, sou eu, o de sempre. Apesar das misérias e desenganos, meu destino é, e continua a ser, amar o mundo. E uma bucetinha de vez em quando".

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Lunes de mi corazón...

"...tento voltar para casa teimando contra rastros & útero, os pés de curupira desmentem o futuro e o passado, tudo é ficção, menos a primeira capa da cebola, a faca de mesa que chora & as unhas manchadas pelo branco da mentira."
Eis o trecho final de uma pequena maravilha lida ontem no banzo domênico e noturno (na íntegra aqui). Agarro-me aos versos "franciscanos" na coragem de retomar a vida, vingada em palavras assim ou num balanço gostosinho das guitarras paraenses (outra pérola do finde - esgarcem, é de grátis!).
Bonne semaine à tous, Dr.E.

domingo, 10 de agosto de 2008

Copyleft neles, Dr. Mário! - notas dominicais

"Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa. Isso era inevitável pois que o meu... isto é, o herói de Koch-Grünberg, estava com pretensões a escrever um português de lei. O sr. poderá me contradizer afirmando que no estudo etnográfico do alemão, Macunaíma jamais teria pretensões a escrever um português de lei. Concordo, mas nem isso é invenção minha pois que é uma pretensão copiada de 99 por cento dos brasileiros! Dos brasileiros alfabetizados.
Enfim, sou obrigado a confessar duma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo. Mas nem a idéia de satirizar é minha pois já vem desde Gregório de Matos, puxa vida! Só me resta pois o acaso dos Cabrais, que por terem em provável acaso descoberto em provável primeiro lugar o Brasil, o Brasil pertence a Portugal. Meu nome está na capa de Macunaíma e ninguém o poderá tirar."

(Carta de Mário de Andrade ao escritor Raimundo Morais, respondendo a acusação de plágio)

sábado, 9 de agosto de 2008

Faxina na existência e o nosso velho samba exaltação

Há dias não escrevo por aqui. Uma série de razões me inviabilizaram, desde um texto para uma revista acadêmica as curtas férias em São Paulo. Em última instância, faço também uma faxina na vida - o que não tem sido fácil. Balanço geral e doloroso, daqueles que põe em xeque meu próprio ato de escrever (seca criativa, falta de manha?). Não se preocupem, não me alongarei com querelas umbilicais.
Bom, como a vida não desapeia e algumas leituras ainda não me deixam indiferente, compartilho o texto do José Geraldo Couto publicado hoje no caderno de esportes da Folha de São Paulo. Prosa sobre nosso nacionalismo, bastante em voga na atual maré olímpica. Coisa simples e direta, como costumam fazer os craques de verdade.

Acaso de migrações
Em tempos olímpicos, cabe indagar o que significam hoje termos como pátria e nacionalidade

"NENHUM BRASIL existe. E acaso existirão os brasileiros?" O verso que encerra o poema "Hino Nacional", de Carlos Drummond de Andrade, sempre me volta à memória em ocasiões como esta, de "exaltação da nacionalidade".
De dois em dois anos, graças às Olimpíadas e às Copas do Mundo, lembramos que somos brasileiros, que nossa bandeira é verde e amarela, que o nosso hino é o "Virundum" e que Galvão Bueno tem o dom da onipresença.
Mas a provocação de Drummond soa cada vez mais atual. O que é uma nacionalidade num mundo cada vez mais globalizado, no qual o poder do dinheiro desconhece fronteiras, línguas, culturas? O que vale mais: o distintivo de um país ou o logotipo de um grande patrocinador? Já faz tempo que a seleção brasileira de futebol, por exemplo, não é mais vista como o ápice onde almejam chegar os atletas, mas como mera vitrine para valorizar seu passe no exterior. Não é mais fim, é meio.
Nestes dias de Olimpíada, fiquei sabendo que uma dupla brasileira de vôlei de praia, Renato Gomes e Jorge Terceiro, vai disputar as medalhas pela Geórgia, ex-república soviética que eles mal conhecem e cuja língua, obviamente, não falam.
Voltando ao futebol, a revista "Placar" deste mês traz uma lista espantosa: a dos mais de 60 futebolistas brasileiros que defendem seleções de outros países.
Há jogadores brasileiros vestindo as camisas da Alemanha, do Qatar, de Hong Kong, da Macedônia, de Honduras, do Vietnã...
O fato é que a noção de nacionalidade se esgarçou muito nos tempos atuais, tornando cada vez mais vazio e retórico o discurso patriótico. O que é a "pátria", afinal? Para uns, é a bandeira, o hino, as glórias da história oficial. Para outros, a pátria é o McDonald's, a Microsoft ou a Daslu. Eu disse uma vez que a minha pátria é o futebol, mas isso é uma simplificação brutal. É, sim, o futebol, mas um certo futebol, aquele que eu cresci vendo e tentando praticar.
É também uma música, um humor, um sotaque. Alguns aromas e sabores. Uma afetividade. "A verdadeira pátria é a infância", disse Baudelaire. É o lugar -real ou imaginário- em que nos sentimos em casa.
Por isso, por mais que admire os feitos de atletas como Rodrigo Pessoa, os irmãos Grael e Robert Scheidt, não consigo vibrar com eles, porque a equitação e o iatismo não fazem parte da "minha pátria".
Não é porque eles ostentam o verde e o amarelo em algum lugar da indumentária que vou me sentir mais próximo deles, assim como não sinto afeto (positivo ou negativo) pelos mauricinhos brasileiros da F-1.
E já que abri esta coluna com Drummond, encerro com versos de outro Andrade, o Mário, que expressam o que não fui capaz de dizer: "Brasil amado não porque seja a minha pátria,/ pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der.../ Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,/ o gosto dos meus descansos,/ o balanço das minhas cantigas amores e danças./ Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,/ porque é o meu sentimento pachorrento,/ porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir".

domingo, 3 de agosto de 2008

Eclesiastes III - notas dominicais


Tudo tem a sua ocasião própria, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de abster-se de abraçar;
tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora;
tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.
Que proveito tem o trabalhador naquilo em que trabalha?
Tenho visto o trabalho penoso que Deus deu aos filhos dos homens para nele se exercitarem.
Tudo fez formoso em seu tempo; também pôs na mente do homem a idéia da eternidade, se bem que este não possa descobrir a obra que Deus fez desde o princípio até o fim.
Sei que não há coisa melhor para eles do que se regozijarem e fazerem o bem enquanto viverem;
e também que todo homem coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho é dom de Deus.
Eu sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode acrescentar, e nada se lhe pode tirar; e isso Deus faz para que os homens temam diante dele:
O que é, já existiu; e o que há de ser, também já existiu; e Deus procura de novo o que já se passou.
Vi ainda debaixo do sol que no lugar da retidão estava a impiedade; e que no lugar da justiça estava a impiedade ainda.
Eu disse no meu coração: Deus julgará o justo e o ímpio; porque há um tempo para todo propósito e para toda obra.
Disse eu no meu coração: Isso é por causa dos filhos dos homens, para que Deus possa prová-los, e eles possam ver que são em si mesmos como os brutos.
Pois o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos brutos; uma e a mesma coisa lhes sucede; como morre um, assim morre o outro; todos têm o mesmo fôlego; e o homem não tem vantagem sobre os brutos; porque tudo é vaidade.
Todos vão para um lugar; todos são pó, e todos ao pó tornarão.
Quem sabe se o espírito dos filhos dos homens vai para cima, e se o espírito dos brutos desce para a terra?
Pelo que tenho visto que não há coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras; porque esse é o seu quinhão; pois quem o fará voltar para ver o que será depois dele?