quinta-feira, 10 de maio de 2007

O resgate do Moustache


Esta semana estava vasculhando meu estranho baú e entre textos, fotos etc., encontrei um folheto escrito há quase 10 anos pelo polemista mundialmente famoso Bob Moustache, também conhecido como Bigode de França. E apesar do tempo, confesso que fiquei incrível com a atualidade da prosa da “aima”, sobretudo diante dos recentes acontecimentos no mundo da cultura nacional, onde secretário de cultura de Estado voltou a decretar o que deve ser ou não considerado como cultura popular (cadê o povo do adjetivo?!) e crítico de jornal passou a se julgar dono do samba (decidindo quem pode ou não falar do democrático ritmo). Como diria Eustrácia, a égua falecida do meu compadre lá de Pau-Amarelo Beach: “agora fodeu a tabaca de Xôla!”
Com vocês, concordando ou não, a verve do velho Bigode:

Glauber, mangueboy avant la lettre
Por Bob Moustache

Talvez por causa do legado da militância comunista de outrora, não costumo atribuir as coincidências qualquer conotação espiritualista. Mas que elas existem, nem o mais cético dos homens poderia duvidar. Outro dia me ocorreu uma que fez lembrar o meu velho e combalido (pero sempre decente!) Pernambuco.
Numa bela tarde de outono, andava eu pelas ruas do bairro de Botafogo, terra de São Sebastião, com destino ao Tempo Glauber – local onde se encontra o arquivo do cineasta – pra fazer uma pesquisa. No meio do caminho, parei diante de uma banca de revistas onde avistei uma publicação que trazia na capa a foto de Ariano Suassuna, anunciado como o mais legítimo dos brasileiros. Ri do tom um tanto sensacionalista da chamada, mas confesso que só não levei a danada porque tava liso.
Chegando no Tempo Glauber, ao abrir a primeira pasta com recortes de jornais, eis que encontro uma matéria publicada n’O Globo em fevereiro de 1977 (pasmem, eu escrevi 1977!) na qual trazia o seguinte depoimento do homem que pôs a Terra em transe:

“Se você pensar bem, o folclore – de uma maneira geral – é uma coisa muito reacionária, até servil. Você vê que em muitas manifestações folclóricas de origem africana, como surgiram no tempo da escravidão (o Brasil foi um dos últimos países do mundo a libertar seus escravos), trazem muito forte a marca da servidão, de cantar e dançar e contar histórias para divertir os senhores. Mesmo depois da escravidão, esse traço continua muito forte. Como no candomblé para turista, como na escola de samba. Não é coisa de ter gente de fora ou de mais ou de menos ou de ‘autenticidade’, é alguma coisa mais grave – como uma genuína manifestação popular, que tem suas origens na arte negra, buscar seus modelos na História Branca do Brasil, com raras exceções. Aquelas roupas ‘da Corte’, a cabeleiras brancas, tudo fica desagradavelmente ligado a uma idéia de (desnecessária) frustração, de querer ser como eram os senhores, de divertir a classe média – onde estão os novos senhores de novas formas de escravidão. Mas eu acho que está, que vai inevitavelmente mudar, que as escolas vão buscar cada vez mais temas e estruturas ligados a riquíssima origem afro-brasileira da celebração, em que podem participar brancos, pretos e mulatos preocupados em viver sua própria alegria que satisfazer as expectativas de uma platéia.” (O Globo 17/02/1977)

Nada mais óbvio que as palavras do cineasta tenham imediatamente me remetido ao personagem da banca de revistas. De bate-pronto pensei nos propósitos do movimento Armorial (espécie de cosmética da fome - salve Ivana Bentes no sample do próprio diretor! - que enganou elite e classe média acadêmica do Recife e alhures) de refinar(?) a cultura popular para o consumo esclarecido (diversão das tais classes). Lembrei também das polêmicas que atravessaram os anos 90 recifenses envolvendo o próprio Ariano e a geração Mangue, controvérsias que o secretário, talvez por preguiça ou desleixo, parecia querer resolver através de uma mera questão lexical (Science ou Ciência?). O rol de pensamentos poderia se desenrolar aqui infinitamente, o que comprova a pertinência e a atualidade do texto de Glauber. Aliás, Glauber que sabia tudo de cinema e de política, com seu terceiro-mundismo internacional ou, para usar a feliz expressão da vez, com seu cosmopolitismo periférico(Ângela Prysthon, dois salves!), foi um verdadeiro mangueboy avant la lettre...

*(reparem o chapéu-coco da foto do post! diz o conversador lá de França que era da mesma marca do de Chico Science)

3 comentários:

Anônimo disse...

não para, não para!
tou lendo tudo!

Anônimo disse...

poucas vezes li algo tao verdadeiro e com tanto embasamento historico-cultural. Porem, faco uma correcao, o Brasil nao foi um dos ultimos paises do mundo a ser "desescravisado". Parabens. vc. escreve muito bem.

Anônimo disse...

a colocação está na citação do glauber, sorry. mas "anônimo" sua visita será sempre bem vinda por estas plagas. a casa é sua...