São incríveis as transformações de sentido (ou semânticas, para os que gostam do vocabulário mais fino) que as palavras sofrem ao longo do tempo. Vejamos o caso de uma tão em voga nos dias que correm, a palavra "cultura".
Derivada da latina "colere", que significa "habitar", "cultivar", "proteger", foi a partir do século XVIII que ela ganhou sentidos próximos dos dias atuais: 1) substantivo abstrato que indica modo particular de vida, quer seja de um povo, um período, um grupo ou da humanidade em geral (mais próxima de um sentido antropológico); 2) substantivo abstrato que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual e, particularmente, artística.
Na segunda metade do século XX, com o estabelecimento pesado da economia de mercado, "cultura" foi transformada em um desejo metafísico universal. Isto porque, mediante a herança de civilidade que o termo carrega, na sociedade do consumo ela funciona como uma espécie de "mercadoria divina": nada como o álibi do dispêndio cultural, o investimento para a alma. Sob o impulso consumista (e aliado a pressão do medo de ficar de fora das conversas nos círculos sociais), passou-se a adquirir "cultura" (e "arte", outra danada!) da mesma forma como se compra o novo modelo de calça da estação - afinal, tudo foi devidamente oferecido, ou melhor, comercializado para se mostrar.
Neste mesmo momento histórico, por outro lado, para os excluídos da festa do livre comércio, "cultura" terminou ganhando um sentido bélico, próximo ao que lhe conferiu o famigerado e sombrio ministro da propaganda e da informação de Hitler, Joseph Goebbels (sampleado por Cadão Volpato no Fellini), que lhe atribuía a seguinte sinonímia:
"Quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver".
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Agora é sério. Esta recente valorização da "cultura" atingiu - além do mercado, claro - praticamente todas esferas da vida social. No universo acadêmico, por exemplo, vários centros universitários no mundo instituíram o ensino de uma nova e paradigmática (anti)disciplina: os estudos culturais.
Originários da Escola de Birmingham, Inglaterra, os estudos culturais se desenvolveram como um campo de pesquisa para a investigação da "cultura" nas sociedades (pós)industriais contemporâneas. Uma característica importante de sua atuação é o compromisso de interagir diretamente com as práticas políticas, sociais e culturais. Nas últimas décadas, expandiram-se para os Estados Unidos, outros países da Europa e da América Latina e hoje são reconhecidos como uma ferramenta de análise legitimada nas áreas de Literatura, Ciências Sociais, História e Comunicação, entre outras.
O fetichismo que tomou conta da palavra "cultura" (descrito interpretativamente na primeira parte deste post) terminou por afetar os estudos culturais que, em muitos lugares, perderam seu cunho crítico e seu intuito original de intervenção política. Constantemente eles vêm se degenerando numa espécie de populismo eclético, produzindo trabalhos laudatórios e acríticos em relação aos temas e objetos culturais sobre os quais se debruçam.
Diante desse quadro, segue aqui um alerta para o trato com a "cultura" (e com os estudos culturais):
Desprezar a economia política, festejar o público e os prazeres do popular, deixando de lado questões de classe e ideologia e não analisar ou criticar a política dos eventos culturais são os caminhos mais rápidos para transformar a cultura em mercadoria (e os estudos culturais em mais uma subdivisão acadêmica inofensiva).
O recado foi dado.
terça-feira, 3 de junho de 2008
Por uma nova genealogia da palavra "cultura"
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