quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Sobre Fidel, Cuba e o preço do mundo



Alguns acontecimentos históricos marcaram a minha vida. Posso enumerar alguns deles. Apesar de catástrofe natural, a cheia de Tapacurá foi o primeiro mediante a repercussão que causou no Recife, porventura a vila deste estranho dotô. Mesmo com pouca idade em 1975, lembro-me bem até hoje do "Deus-nos-acuda" causado pelo medo das torrentes d'água. Na época eu criava um bode (Berualdo, sua alcunha) que não aguentou esperar pela vazão do rio e deu um mosh do telhado onde se refugiava para ser levado pela correnteza para a eternidade (foram tantas lágrimas pela perda do bicho que quase inundei a cidade novamente). Para além desta tragédia pessoal, Tapacurá ficou marcado na história e no imaginário da capital pernambucana. Não era pra menos. Para se ter idéia, em vários lugares as marcas da altura da água chegaram aos 2 metros! O amigo cratense Xico Sá lembra que, logo que chegou no Recife de mudança, em toda esquina se escutava a narrativa deste dilúvio (hoje ela perde apenas para a trágica derrota do Naútico para o time de futsal do Grêmio).


Pois bem, sobrevivente de Tapacurá, tive a oportunidade de vivenciar outros fatos históricos com a mesma dimensão - pelo menos pra mim. Vou citar 3 deles na cronologia: a queda do muro de Berlim (1989, verdadeiro "perdido" na elite pecebista!); o atentado das Torres Gêmeas(2001); e, agora, a renúncia do comandante Fidel Castro (2008). É sobre este último acontecimento que gostaria de jogar umas palavras fora.


De antemão digo que Cuba me despertava (e ainda desperta) mais a atenção do que o seu ex-líder. Isto porque sou averso aos cultos personalistas em qualquer instância (essa coisa que, sobretudo, a indústria cultural adora). Fidel usou e foi usado por sua imagem como símbolo da revolução cubana até onde pode. Ele, como líder de movimento marcadamente popular, terminou se transformando em sua encarnação, o que não é lá muito legítimo... O mesmo ocorreu com seu companheiro Che Guevara, só que neste caso muito mais usado. Guevara sempre me pareceu um personagem mais interessante por sua busca de uma "revolução permanente", não aceitando cargos no governo revolucionário cubano e partindo para o front em outros lugares (como se sabe morreu na Bolívia depois de ter lutado em alguns países africanos). A anti-instituição em pessoa cuja apropriação "pop" sempre me causou uma estranheza repulsiva.


A admiração que carrego por Cuba, embora sem nunca ter posto os pés por lá, se deve basicamente a dois fatores. Um cultural e outro político. O primeiro se refere a vivacidade com que se apresenta sua cultura popular. Dois exemplos: a santeria, com seus "deuses que dançam" próximos do nosso candomblé, e, sobretudo, a música, com sua riqueza e variedade rítmica assombrosa. O segundo é um pouco difícil de explicar. Não se deve a política institucional cubana, que não deve ser de fácil convivência para seus habitantes. Por conta desta, sempre achei que o Recife, por exemplo, mesmo (ou sobretudo, o leitor que escolhe) o da zona norte - leia-se mais pobre -, deve ser um lugar mais divertido de se viver (que digam os músicos cubanos que lá se exilaram neste verão!). No entanto, para que eu não seja injusto, uma coisa não pode ser esquecida aqui: as condições sociais da ilha pós-revolução ficaram melhores do que nos tempo de Fulgêncio Batista - e isto não pode ser ignorado nem pela direita nem pela esquerda. Mas quando me refiro ao fator político é dentro de uma dimensão maior, não estritamente ao seu mecanismo interno, e sim no que diz respeito a um outro funcionamento possível no mundo. Eis o que politicamente Cuba representa para mim: a coragem da possibilidade de se viver fora da ordem neoliberal. Sei que talvez seja uma leitura generosa. E também sei que o preço importa - não torturaria ninguém por algo. Mas, por falar em preço, não esqueçamos que pagamos caro pelo mundo que nos é imposto...


Cuba sobreviverá independente de Fidel Castro. Sobreviverá nos cubanos, na resistência ao mundo da técnica e do consumo e, especialmente, na sua humanidade quente.

Um comentário:

BelaCavalcanti disse...

"Mas, por falar em preço, não esqueçamos que pagamos caro pelo mundo que nos é imposto..." /Bote caro nisso... mas ainda eh o que funciona (eu acho). Muito bom, teu texto, beto.
bj.