domingo, 11 de maio de 2008

Uma fábula contra o mundo da técnica

Entre os anos de 2005 e 06 o Dj Dolores (foto) manteve uma coluna semanal no Diário de Pernambuco. Há exatos 2 anos foi publicada nela esta pérola que reproduzo aqui. Uma ótima fábula, ambientada no mundo da música pop, contra o discurso da técnica e a favor do free style. Boa (re)leitura!

Quinta-feira, Maio 11, 2006

Técnica X Intuição

O mundo é injusto!

Tomemos duas amostras casuais, o músico R e o músico L. O primeiro demonstrou queda para a música desde pequenininho, matriculou-se no conservatório, dedicou-se arduamente a estudar escalas – desenrola as pentatônicas como se assobiasse - técnicas de dedilhado, acordes difíceis e ritmos em divisões de tempos complexos. Seus dedos estão calejados pelas cordas, sua boca ferida pelo bocal, as costas reclamam do peso do instrumento.

Depois de tanto tempo investindo em seus estudos, o Sr. R se vê trabalhando em ambientes de pretensões jazzísticas, mas maculados por goles de cerveja, risadas jocosas e caôs amorosos. No fim da noite, o Sr. R está arrasado, ressentido com a raça humana – essa cambada de ignorantes! – pois ninguém respeita seu trabalho, sua técnica sofisticada, sua filosofia berkeleeniana... seu virtuosismo!!!

Por outro lado, o Sr. L chegou até a música por causa da maloqueiragem. Entre uma cerveja, um baseado e a roda de amigos, aprendeu a tocar um instrumento. Desenvolveu sua técnica de modo intuitivo, montou acordes copiando cifras de revistas, não sabe ler nem escrever partituras e – pasmem! – pendura a guitarra de modo desleixado, lá embaixo da cintura.

Mas o Sr. L tem qualidades: sua música simples seduz o público, tem noção de tempo e sabe como timbrar seu instrumento conferindo-lhe personalidade. Seus erros – erros sob o ponto de vista da escola do Sr. R – são inovadores por subverterem uma linguagem conservadora. O resultado veio em shows e carinho do público – gentalha, diria o círculo de amigos do Sr. R – que imita seu estilo de pegar a guitarra em inspiradas air guitars.

Com todo seu saber intuitivo o Sr. L virou referência não só no país, mas também fora e deve ser lembrado durante muito tempo como alguém dono de um estilo próprio.

Para o Sr. R, resta o consolo de seus pares injustiçados que, entocados nos porões do virtuosismo, se exibem uns para os outros.

Não, o mundo não é injusto. A gente é que sabe escolher o que a gente gosta.

A escola

A Escola de Berkelee virou paradigma de virtuosismo musical. Para alguns, é claro. De lá saíram os músicos mais chatos do planeta, emoções esmagadas pela técnica pura, pela afetação exibicionista, uma presunção elitista baseada em enquadrar a música popular na escrita acadêmica.

Sua corrente de pensamento acredita na música como algum tipo de esporte que pode ser medido com exatidão numérica, como se a quantidade de notas num solo ou o número de acordes – sempre bastante complexos – determinasse uma progressão musical.

Os caras fizeram o impossível: pegaram o jazz e o blues e encaretaram ao suprimirem o que tem de melhor nesses estilos: a espontaneidade generosa dos seus intérpretes.

E agora eles tem uma cadeira para DJs. Encaixotaram o scratch!!!

Alguém aí lembra dos nossos armoriais?

A Casta

Existe sempre alguém tentando nos convencer que alguns são absolutamente melhores que os outros. O velho embate do gosto é o esporte favorito das elites para nos convencer que seu dinheiro gerou cultura de qualidade.

Puro engodo retórico!

O sistemas de castas culturais cansa a minha paciência e me faz ter essa horrível sensação de perda de tempo. Lembro-me, por exemplo, de uma palestra onde o venerável Ariano Suassuna ardia em chamas irritado com a presença da guitarra – esse objeto alienígena – na pureza da nossa música brasileira.

Fred Zeroquatro, então um jovem punk, lembrou que o piano – tão usado na construção armorial - era um instrumento europeu.

E o velho mestre corou e engasgou diante da platéia do Centro de Artes.

Seria apenas cômico se tantos não o levassem a sério.

(Ps.: para quem quiser mais da verve do Dj, os textos ainda estão disponíveis aqui)

Um comentário:

Anônimo disse...

"Seria apenas cômico se tantos não o levassem a sério."

beijos